Quando a linha entre erudito e popular é tênue demais



O homem é um ser vivo que tende a dividir tudo em rótulos. E quando se trata de música então... Nossa... É rótulo que não acaba mais (afinal, dividimos as canções entre rock, pop, blues, jazz, reggae, MPB etc.). Mas vamos focar na divisão criada lá no topo da árvore: "erudito" e "popular".
Tendemos a considerar "erudita" toda música produzida em épocas passadas, cujos compositores em geral são mais conhecidos que os intérpretes; já o "popular" seria a música feita em tempos mais recentes, cujos intérpretes se conhece mais que seus autores. Não que isso seja algo científico, documentado; é apenas uma certa divisão mental entre as duas categorias que acabei de tentar fazer aqui. Porém, por mais que hajam certas diferenças entre música erudita e popular (e por mais que hajam "tribos" de um lado e de outro que não se entendam - o que acho uma palhaçada sem tamanho), há certos momentos em que a linha divisória quase inexiste.



Vamos a um exemplo pessoal: esses dias fiz uma pesquisa sobre o compositor Ernesto Nazareth. Vejam: o cara foi influenciado por Frédéric Chopin, conheceu Darius Milhaud (compositor francês que viveu no Brasil por uns tempos, lá na década de 10 do século passado - ele tem uma peça chamada "Saudades do Brasil", acreditam?!), teve contato com Heitor Villa-Lobos e escreveu um vasto catálogo musical - é sobre este último que preciso falar. Sua música está muito centrada no piano - algo muito à la Chopin, Schumann e Alkan, eu diria - e tem uma forte demanda técnica, exigindo vários saltos das mãos, esticamentos dos dedos e muito mais. Porém, ao ouvirmos gravações da maioria de sua obra, o que percebemos? Um ritmo sincopado, linhas melódicas cheias de floreios e muito swing. Daria ou não para considerar "Odeon", de 1909, um "proto-samba"?

Alexandre Dias interpretando "Odeon" - é ou não é quase um samba?

Então... Ernesto Nazareth compôs sua obra nos moldes eruditos clássicos: através de manuscritos, com posterior publicação das partituras e tal. Só que sua música cruza facilmente a fronteira entre o erudito e o popular - fronteira essa quase inexistente, digamos. Tanto é possível incluir obras dele em recitais de piano quanto em shows de grupos de chorinho, por exemplo - não perdem nem um pouco de sua essência, seja qual for a forma que forem apresentadas. Também é possível colocar sua obra tanto em filmes cult quanto na novela das seis (aliás, teve uma novela épica bem recente que incluiu "Odeon" na trilha sonora, não?). Enfim... Ele compôs de tal forma que fica muito difícil definir se determinada peça é "erudita" ou "popular" - talvez a mesma se encaixe em ambas as categorias de igual forma.



Vamos a outro exemplo: o famoso Prelúdio em Dó Menor Op. 28 nº 20 de Frédéric Chopin, escrito entre 1838 e 1839. Acompanhe o vídeo abaixo:

interpretação: Frédéric Bernachon

Agora... Acompanhe "Could it Be Magic" (Barry Manilow):


E aí, notou a semelhança?
Então... Muito acontece de canções populares se apropriarem de conteúdos da tradição musical dos séculos passados. "Could it Be Magic" é claramente baseada em Chopin - usa quase os mesmos acordes. E esse é apenas um pequeno exemplo.



E agora vamos analisar esse tema por outro aspecto.
O que chamamos "erudito" hoje era, de certa forma, o que estava no hit parade em sua época. Por exemplo, no século XVIII se fazia concertos e recitais, se apresentava óperas, como hoje se faz um show de rock, por assim dizer. Não tinha frescura, formalidades; era marcar o evento, convidar a galera e era isso.
Fazer música nos séculos passados era como fazer música hoje: trabalhar com o som. A única diferença é que, até determinado ponto na história, não havia como registrar o som (o primeiro equipamento capaz de gravar - o fonógrafo - só surgiu mais ou menos no final do século XIX), logo, não havia como comprar discos, fitas e CDs naqueles áureos tempos. O máximo que dava era para comprar a partitura e tentar tocar, ou então assistir aos concertos.
Falando nisso, temos a história de um concerto memorável de Beethoven em 1808 que foi, naquele tempo, o que hoje seria marcar um show em alguma casa noturna famosa, digamos. O compositor e maestro fez tudo por conta própria, arranjando uma orquestra, cantores etc., como hoje se monta uma banda. Ensaiou muito antes do concerto, como hoje uma banda ensaia muito antes de um show importante. Arrecadou fundos através da venda de entradas como hoje uma banda vende ingressos para seus shows. Alugou o Theater an der Wien, na Áustria, para realizar seu espetáculo, como hoje uma banda marca show, vamos supor, no Bar Opinião, ali em Porto Alegre. Teve certos problemas de execução do repertório, assim como uma banda, num show moderno, pode ter problemas técnicos com seu equipamento ou algum integrante passando mal no palco.
Tem tudo isso e muito mais sobre esse concerto histório aqui (em inglês).



Enfim, eu poderia colocar infinitos exemplos aqui sobre o quão diluída é a fronteira entre o que chamamos de "erudito" e "popular" - se é que há alguma. Pois, se formos analisar bem lá no fundinho, não é tudo a mesma coisa? Notas? Pausas? Acordes? Melodia? Ritmo? Dinâmica?
Será que ainda não percebemos que, mesmo com essa suposta divisão entre "erudito" e "popular", a música é, de fato, uma só?

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