Como é voltar a estudar piano quase vinte anos depois?



Vejam como é esse mundão...
Até bem pouco tempo atrás, mais ou menos até a época do Carnaval, eu estava com a agenda extremamente lotada, tocando com cinco bandas ao mesmo tempo, mal conseguindo parar em casa, a não ser para dormir (e olhe lá...). Era ensaio aqui, show ali, reunião acolá, gravação logo ali... Às vezes eu chegava a ter três ou quatro compromissos no mesmo dia, e em lugares e circunstâncias muito diferentes.
E, de repente, tudo parou... Mas não que as bandas tenham acabado ou coisa assim, muito pelo contrário; foi o mundo que parou. Tudo por causa de um bichinho microscópico xarope que resolveu atrapalhar a vida da gente, né... Nem entro no mérito da questão porque este blog não é espaço para discutir esse tipo de assunto. Mas tudo o que posso dizer é que toda e qualquer atividade que todo e qualquer artista tinha agendada foi sistematicamente suspensa, pois agora nossas agendas têm um compromisso muito mais importante: se resguardar e cuidar da nossa saúde e da saúde daqueles que amamos. E, claro, tomar as devidas precauções higiênicas.
Mas enfim, isso tudo foi apenas um preâmbulo para eu contar o que aconteceu comigo nesses últimos tempos.
Desde o momento em que os compromissos de todas as bandas foram cancelados, comecei a ter muito tempo livre. Nisso, me peguei fazendo "n" coisas nada produtivas - não por vagabundagem ou qualquer coisa que o valha, mas porque me percebi com uma estafa tão grande que mal podia pensar direito. Era navegar na Internet, jogar, ficar olhando WhatsApp e Facebook (e afins)... Passei um longo tempo fazendo literalmente nada útil - a não ser eu ter lido umas duas ou três autobiografias de artistas (enfim, isso foi útil de fato).
Então, um dia vi uma story do Instagram de uma amiga, onde constava um meme com uma referência a Piotr Tchaikovsky e sua "1812 Overture". Nisso comecei a conversar com ela sobre a obra; mais tarde, passamos a conversar sobre música erudita em geral. Daí em diante fui ouvindo uma obra atrás da outra... Era concerto, depois sinfonia, depois ópera, depois sonata... Foram muitas, muitas, muitas. E cheguei a falar no Twitter sobre cada uma das obras que ouvi.
Nisso comecei a ter pensamentos sobre as aulas de piano que tive entre 1991 e 2001 - e sobre o fato de eu ter parado de estudar piano em função de "n" motivos. Também comecei a perceber quanto tempo havia se passado desde a última vez em que tive uma aula de piano. Aí me peguei em devaneios do tipo "bah, eu nunca devia ter parado...", "que pianista eu seria hoje se tivesse continuado...", esse tipo de coisa.
Além disso, também percebi que andei relaxando demais. Eu tocava nos ensaios e shows - e era isso. Em casa eu quase nem encostava nos instrumentos. Talvez por causa do "automatismo" gerado pela agenda sempre cada vez mais cheia de não muito tempo atrás? Notei meus dedos perdendo agilidade - e isso me acendeu um sinal de alerta.
Então, brotou em mim uma vontade de tentar mais uma vez. Mas também comecei a ter receio de não conseguir, por causa da minha idade e tal. Falei com vários amigos da área - essa amiga do story de Tchaikovsky, inclusive; ela é professora de canto lírico e vocalista de duas ou três bandas, uma delas de symphonic metal - sobre esse assunto; expliquei a situação da minha vontade de voltar a estudar piano tantos anos depois e perguntei se isso teria alguma chance de dar certo. O resultado foi que recebi incentivos de todos, e isso me deixou bem mais animado. Mas eu ainda não sabia no que isso daria...
Enfim, no dia 3 de junho, após muito pensar a respeito, decidi começar a pôr o plano em prática, ao construir um "cantinho do estudo" no meu home studio, colocando ali primeiramente apenas meu piano, depois um teclado ao lado (explico o porquê depois).

Primeiro dia do "cantinho do estudo"

Feito isso, já comecei a procurar as primeiras peças para estudar. No início, preferi coisas mais simples, como invenções a duas vozes de Bach e por aí foi. Afinal, eu não sabia se essa volta ao estudo do piano realmente vingaria. Tudo era experiência, e mais: a ideia ao incluir essas peças mais "tranquilas" era simplesmente para eu me reacostumar à rotina de treinos, sem muita exigência, sem muitos detalhes. Ali o objetivo era apenas saber se eu ainda conseguiria acompanhar partituras após tantos e tantos anos sem usá-las.
Os primeiros dias foram tensos. Eu engasgava muito as linhas melódicas, errava notas de tudo quanto era jeito... Bom... Quase vinte anos sem estudar piano dá nisso, né?! Cheguei a pensar que talvez isso não fosse para mim e que o melhor seria desistir da ideia, mas tinha algo dentro de mim que não me deixava sequer pensar em desistência. Não apenas fui treinar de novo no dia seguinte, como também já dei sinais de melhora na execução.
Quatro dias depois, percebendo já ter duas invenções a duas vozes de Bach e o "Solo Per il Cembalo" de C. P. E. Bach no programa, resolvi incluir um teclado ao lado do piano. Por quê? Para poder tocar esse material com timbre de cravo e sem sensibilidade nas teclas. Para quem não sabe, piano e cravo são dois instrumentos extremamente diferentes, embora ambos sejam de teclas. O cravo tem um som metálico e sua dinâmica é fixa; o piano tem um som mais aveludado e sua dinâmica varia muito. Eu quis simular um cravo através do teclado; daí em diante passei a treinar as peças para cravo no teclado.

Quinto dia do "cantinho do estudo"

O tempo foi passando e comecei a recuperar a capacidade de leitura de partituras, assim como a antiga agilidade dos dedos e a confiança na hora de tocar as peças. Quando vi, já tinha ao menos umas dez peças no programa - fiquei mais e mais confortável com a rotina de treinos, e a coisa foi se tornando cada vez mais natural. O primeiro treino durou pouco mais de uma hora e pareceu demorar bastante; vários dias depois, os treinos chegavam a durar duas horas e eu nem sentia o tempo passar.
Fui elevando o grau de dificuldade das peças e, sete dias depois, eu já estava estudando Christian Sinding e seu Fruhlingsrauschen (seria "Sussurros da Primavera" em alemão). Uma peça de dez páginas, lotada de arpejos ultra-rápidos - bem maior que as anteriores que eu tinha escolhido, de no máximo três páginas, e consideravelmente mais difícil que todas as anteriores até então.

12º dia do "cantinho do estudo" (em novo local) - repare em Fruhlingsrauschen pendurada na parede para eu ver todas as páginas (!!!)

Eu no 13º dia de treinos logo após repassar "Consolation" (Liszt)

Os dias foram passando novamente, eu ia treinando cada vez mais, me dando bem com as peças, mas... Algo não estava certo. Para conseguir tocar, só aquele banquinho da cozinha não bastava; eu tinha que colocar umas três almofadas sobre ele para poder ficar na altura certa. Só que isso também me causava um certo desequilíbrio. A solução? Encomendar uma banqueta.
Meu piano, um Kurzweil KA-90, foi feito para uso em palcos. Logo, vem de fábrica sem estante, a qual, modelo KAS-5, precisa ser adquirida em separado (o que fiz no ano passado). Mas isso não era o suficiente para o estudo de piano; então, logo encomendei uma banqueta e, por fim, a mesma chegou no dia 19 de junho. O piano ficou completo.

17º dia do "cantinho do estudo" - o piano finalmente ganhou sua banqueta

Aí o tempo seguiu passando, fui ficando cada vez mais seguro com as peças de então e decidi que era hora de elevar o nível ainda mais. Para isso, substituí todas as peças anteriores por várias novas, dentre as quais uma sonata clássica (no caso, uma de Haydn em Mib Maior, Hob. XVI:49), um prelúdio e fuga de Bach (BWV 847, nº 2, em Dó Menor), dentre outras.
Era óbvio que, mudando todas as peças, eu teria que recomeçar tudo. Mas esse era o objetivo: evoluir. Escolhi peças relativamente mais complexas, que exigem máxima atenção e bem maior agiliadde. Tive que estudar cada uma detalhadamente antes de pensar em executá-las. Só então fui tocá-las para ver como eu me saía.

Eu no 22º dia de treinos - livro de sonatas de Haydn sobre o piano

Quando comecei a tocar essas novas peças, tive um bocado de dificuldade - o que é natural, pois são bem mais complexas que as primeiras que eu havia tocado. Para superá-las, fiz diferente em relação ao que eu costumava fazer no início: estudei pequenos trechos de cada peça, de forma detalhada; depois, tentei unir um trecho com outro, progressivamente, até conseguir tocar tudo. Em certos casos estudei cada mão em separado antes de tentar juntá-las.
Houveram dias em que não consegui treinar direito, por diversas razões. Mas sempre, no dia seguinte, eu dava um jeito de compensar. Também houveram certas ocasiões em que de fato não pude treinar; no dia seguinte, eu me puxava ainda mais.
Hoje meus treinos duram em média duas horas e meia, com cerca de dez minutos de intervalo. Sempre começo com Bach (atualmente o Prelúdio e Fuga nº 2 em Dó Menor, BWV 847; minha intenção é, posteriormente, experimentar A Arte da Fuga, uma invenção a três vozes ou algum outro prelúdio/fuga do mesmo BWV) - é minha forma de aquecimento. Na sequência, trabalho na sonata clássica (atualmente a sonata em Mib Maior de Haydn, Hob. XVI:49 - a próxima possivelmente será de Beethoven, ainda não sei qual), para ver questões técnicas de notas, dinâmica e dedilhado. Logo em seguida, passo às demais peças - essas são de livre escolha, mas levando em consideração o grau de dificuldade de cada uma; minhas escolhas atuais são Fruhlingsrauschen (Christian Sinding) e o tango brasileiro "Favorito" (Ernesto Nazareth) - cheguei a experimentar o "Allegro Appassionato", Op. 14 (Alexandre Levy), mas decidi deixar essa peça para mais adiante. Conforme for, caso sobre mais tempo após eu treinar as duas peças iniciais obrigatórias (Bach e sonata) e uma ou mais dessas outras peças citadas, aproveito para rever uma ou duas das anteriores apenas para relembrar da(s) mesma(s); faço isso geralmente quando termino o programa principal e ainda faltam uns 15 minutos ou mais para o fim do treino (sim, tenho horário limite aqui, 22h30m, após o qual encerro tudo, já que moro em zona residencial com regras bem estritas quanto a som após as 22h).
Considerando todo o tempo que passei sem estudar piano, vejo que jamais perdi a essência erudita, apenas um pouco da prática. Minha meta com essa nova rotina caseira de treinos é, primeiramente, uma reciclagem; depois, a evolução da técnica e da expressividade; por fim, se tudo correr como o esperado, estar habilitado não apenas a ser professor de piano como também entrar de vez no circuito erudito, participando principalmente de recitais. Há mais outro objetivo aqui: através do estudo do piano erudito, melhorar minha técnica também no trabalho com as bandas, quando o mesmo for retomado - pois não é necessário escolher OU piano erudito OU bandas; é plenamente possível extrair o melhor dos dois mundos. Embora hoje eu esteja 100% focado em estudar piano, nada impede que a técnica adquirida nos treinos também seja aplicada ao trabalho nos palcos e estúdios por aí.
Percebi que, sim, ainda tenho muita lenha para queimar, mesmo que eu tenha esquecido de acender a fogueira desde 2001 até o dia 3 de junho deste corrente ano. Idade não é desculpa - um homem de 36 anos (quase 37) ainda é jovem. E posso afirmar com total certeza de que, se eu tinha o objetivo inicial de voltar a ser o pianista que eu era aos 18 anos, já o cumpri, e com muita folga. Graças a esse programa caseiro de treinos por conta própria, consegui não apenas continuar de onde eu havia parado, como, num treino bem recente, consegui tocar até melhor do que eu tocava na época.
Agora tenho um novo objetivo: evoluir sempre, cada vez mais. Um dos meus próximos passos é contar com a orientação de um professor de piano renomadíssimo de Porto Alegre, mestre de pianistas que hoje atuam pelo mundo afora em recitais e concertos. Pode não ser tão em breve assim, mas ainda tocarei Charles-Valentin Alkan, só aguardem.
Então, se você já estudou piano, parou há vários anos e tem vontade de voltar, mas acha que não vai conseguir por "se achar velho demais" ou porque "muito tempo já passou"... Ei, acorda! O instrumento está aí à sua frente. A partitura também. Bota os dedos nas teclas, tenta tocar e, se errar, não dá nada, vai de novo. E de novo. E de novo. Até conseguir. No outro dia, mais uma vez. E assim sucessivamente.
Quem sabe você volta a ser o pianista de outrora? E até melhor? Tudo é sobre começar.

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