Por que gosto de tirar leite de pedra


Existe algo que li, não sei onde, talvez não com essas palavras, que me tocou profundamente, e cuja mesma citação já usei em outra postagem: "o instrumento não faz o músico". Desde o dia em que li isso - um dia que nem lembro quando foi - mudei muito minha forma de pensar a respeito da elaboração do meu set e dos instrumentos musicais em geral.
Talvez eu já tenha falado sobre isso antes (e talvez esse assunto tenha começado a ficar chato), mas sempre acho importante reiterar: não importa qual/quais instrumento(s) você possui, sempre haverá algo de bom a se extrair do(s) mesmo(s). Aliás, eu mesmo, como tecladista, sempre tive essa característica de "tirar leite de pedra" - em outras palavras: pegar instrumentos básicos, comuns, e, de alguma forma, conseguir obter resultados sonoros muito interessantes. Uso isso no meu dia-a-dia como músico, seja no meu home studio, seja com banda.
Hoje, no entanto, a abordagem é um pouco diferente: vim aqui falar sobre o porquê de eu gostar de "tirar leite de pedra" quando o assunto é instrumentos musicais. O porquê de, ao invés de ir atrás das novas modas e tendências tecnológicas, eu preferir ficar na minha e procurar o(s) instrumento(s) com o(s) qual/quais simpatizo mais, não me importando com marcas e modelos, nem se são novos ou não. Os motivos são vários e, sendo assim, acho que um formato de lista seria o ideal, então aí vai:



1. PARA MIM, O QUE IMPORTA É O SOM


Farei uma pergunta simples aos leitores que tocam teclado: vocês montam seus sets no palco pensando na melhor sonoridade para o repertório da banda ou nas melhores fotos para a página do Facebook?
Muito cansei de ver tecladistas por aí cujos sets no palco estavam impecáveis, mas que sonoramente não tinham nada demais. E também vi verdadeiros gênios tirando um som de arrepiar dos sets mais banais possíveis. Para estes últimos, o som era muito mais importante que a imagem - e, a meu ver, todos os tecladistas deveriam ser assim. Primeiro se concentrar em cumprir seu papel com responsabilidade e obter o melhor som, depois ver como ficaram as fotos do show. Eu mesmo prefiro focar mais no trabalho musical do que em ficar bem na foto - os sets que uso no palco são formados de instrumentos simples e funcionais, que atendem bem às minhas necessidades, mesmo que não sejam aquilo que a grande maioria usa, e mesmo que alguns os considerem "feios". Às vezes mostro fotos do set na minha página, mas não é bem esse o objetivo dos instrumentos ali, né? Para mim, o que importa é tocar, não se as fotos ficaram boas. nem se os instrumentos são bonitos.
E outra: o mesmo som que eu tiraria de instrumentos caríssimos, usados por famosos, posso obter com os instrumentos que tenho hoje, que certamente são bem mais baratos. E de uma forma bem mais prática, sem necessidade de ler manuais gigantescos e percorrer toneladas de menus. De novo: som em primeiro lugar.



2. VEJO ISSO COMO UM DIFERENCIAL

Foto do meu set durante passagem de som para show com banda de eventos em 2009

Considero o "tirar leite de pedra" um diferencial em meu trabalho - isso já faz um longo tempo.
Uma vez, em 2009, tive show com uma (já extinta) grande banda de eventos, cujo repertório exigia um bocado de timbres e programações diferentes. Lembro que um dos instrumentos do set era um módulo sintetizador de modelagem analógica de fabricação nacional, da marca Labolida, modelo nano1 (assim mesmo, em letras minúsculas) - na época era o sintetizador do gênero mais barato do mercado. Para controlá-lo, usei um tecladinho super tosco, que peguei emprestado de um amigo: um CCE, cujo modelo não me vem à mente agora, mas que possuía uma porta MIDI OUT - suficiente para conectar ao sintetizador Labolida. Ainda sobre esse tecladinho: faltava um botão no painel - mas desde quando que eu precisaria apertar botões no painel se o que importava realmente eram os controles do Labolida? Então, usei essa combinação no palco e deu super certo.
Aí em cima está a foto do meu set naquela noite. Repare no pequeno equipamento retangular colocado sobre o órgão Tokai TX-5, no lado esquerdo - era o sintetizador Labolida nano1. Repare no tecladinho logo abaixo do mesmo órgão - era o CCE. Tosquice para alguns, mas para mim fazia todo o sentido: eu tirava sons à la Minimoog. Talvez muitos fossem olhar para aquilo e ficassem pensando "eu faria melhor com um Minimoog Voyager" e por aí vai, mas enfim, qual o motivo de investir uma fortuna desmedida num instrumento desses apenas para uns solos de sintetizador?
Hoje tenho um legítimo sintetizador analógico, um Korg Monologue, e sei que poderei usá-lo quando necessário, mas naquele tempo eu não tinha nem condições, nem a prioridade de conseguir um sintetizador analógico propriamente dito. O que importa é que consegui resultados muito próximos aos de um sintetizador analógico com a tal combinação - mesmo que isso "não saísse bem na foto" aos olhos de muitos.



3. A SIMPLICIDADE CAUSA ESPANTO
Modéstia à parte, várias vezes já fui elogiado por muitas pessoas após participações em shows de diversas bandas, desde o começo. Elogiavam a técnica, a performance etc., mas o que mais me chamava (e ainda me chama) a atenção é quando me faziam perguntas no sentido de "Eliseu, como é que tu consegue tirar todo esse som desses teclados tão simples?", essas coisas.
Estamos acostumados a ver tecladistas famosos com super sets de instrumentos tops de linha, e já temos a noção de que o som a sair dali será fenomenal. Agora, o desafio é conseguir criar uma sonoridade que cative o público usando instrumentos bem mais prosaicos - enquanto que instrumentos tops de linha em geral já vem preparados para tal, os de entrada e os de nível médio (entry level, mid level) requerem muito mais criatividade por parte do tecladista - se necessário, uma boa noção de áudio também, para que nada fique muito estridente, nem muito abafado (em outras palavras: saber ajustar bem graves, médios e agudos), e para que tudo fique no volume certo, de forma a se somar bem à banda. Fui aprendendo isso tudo com o tempo - nunca tive a facilidade de conseguir os últimos lançamentos tops de linha do mercado, então, eu precisava me virar com o que tinha, e sigo esse princípio até hoje.
Quando monto meu set de teclados no palco para um show com uma banda, tenho em mente que sou parte da mesma, não a atração principal. Estou ali para somar, não para aparecer. Trabalho no sentido de criar o melhor possível com aquilo que tenho em mãos, não no de mostrar que uso tal, tal e tal instrumentos. Meu objetivo ali é cativar a audiência, não querer todos os holofotes para mim. Talvez por isso meu trabalho como tecladista chame a atenção: pela simplicidade. Por eu tentar usar o melhor que posso da criatividade com as ferramentas que estão na minha frente, sem visar fama e status. E jamais abrirei mão dessa simplicidade, em nenhum momento.



Eu poderia listar vários outros motivos aqui, mas acho que esses três já dizem tudo. "Tirar leite de pedra" é meu lema, seja no estúdio, seja no palco, seja onde for. O que quero é fazer som, com aquilo que tenho, e fazer as pessoas felizes com isso. Sem instrumentos caríssimos, sem holofotes - só a música e mais nada. Meu negócio é tocar, não me exibir. E assim será enquanto eu estiver nesse mundo.

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